o regresso de el-rei
é morto, é morto
- diziam todos –
mas não viera para ele ainda a morte;
regressará, regressará
- replicavam –
mas dos céus tardava a cair
esse nevoeiro anestesiante,
órfica sensação de êxtase;
e morria aos poucos
o ínclito príncipe,
dos homens o primeiro
desacreditado…
um dia veio em que disseram
é vivo, é vivo el-rei;
mas já os homens não combatiam
a cavalo; já o mundo conhecera
todo o bem e todo o mal
e fruto do hélio eram as névoas
que sacras se queriam;
ninguém acreditou então
na vinda, no regresso prometido
de el-rei D. Sebastião.
18 de Setembro de 2003
a pira
não virá hoje o sono
consolador, ao herói aqueu,
nem nos braços das musas
cairá o ser dolente
da vida, da ausência declarada;
renunciou o deus
ao seu pedido; não lhe agradaram
no altar as vítimas
pouco puras, ao certo;
e inútil o altar inteiro,
aos céus não subiram
os fumos da pira sacrílega
pois que sacrílegas as mãos
que a atearam;
e não soprou o vento do norte
nem qualquer dos zéfiros.
e agora é a tenda
fria, branca;
o céu sem estrelas
onde cansados fitam os olhos
a demora da rósea aurora;
dominado é o herói
pela Insónia, divindade nova;
assim eram as noites em claro
nos tempos em que na batalha
lado a lado combatiam
homens e olímpicos.
21 de Setembro de 2003
intersecções
de novo me afundei
nas confusas malhas do teu ser
rede de delicados fios de linho
que nem atropos ousou cortar.
advertera-me lóxias divino
pelos sacrifícios propiciado,
mas em ti mergulhei
a um só salto vertiginoso
sem retorno.
nem me valeram, esquecidos,
os sábios conselhos de Cassandra
de desgrenhada cabeleira,
no dia em que, como suplicante,
penetrei as muralhas de príamo
que não podiam ser transpostas.
avançavam os teus olhos
(sanguinolenta visão do desejo)
e ao toque de duas mãos
petrificou todo o ser.
amei-te ainda com as parcas forças
de um cadáver que arde na pira,
corpo disforme que não correste a resgatar
das labaredas de hefesto
falsa Evadne.
o céu inteiro caiu
em cerrada treva.
era a hora em que, nos campos,
orfeu deliciava as feras
com o seu lácteo canto.
para mim, ítaca era menos
que uma quimera, menos que a utopia.
condenado o meu corpo ardia
nas margens do letes que cérbero guarda.
penélope esquecera a teia,
irrecusáveis as oferendas dos pretendentes
saqueadores do palácio que é meu.
e eu que por ti abandonara ogígia
e a bela calipso de rosto de prata.
Algarve, 25 de Julho de 2004