Desfalecido por doce combate, ó minha vida, jazia
sem forças, estendida a minha mão sobre o teu pescoço,
esgotado todo o sopro na minha boca ressequida;
com novo vento não podia reanimar-se meu coração.
Já o Estiges se perfilava ante meus olhos, os reinos onde não há sol
e a sombria barca do velho Caronte,[i]
quando tu, arrancando-o do fundo das tuas entranhas,
sopraste um beijinho molhado em meus lábios secos,
um beijinho que me fez regressar do vale do Estiges
e forçou o velho a zarpar de barca vazia.
Enganei-me. Não rema ele em batel vazio:
para junto dos manes voga já a minha triste sombra.
Parte da tua alma, ó minha vida, vive neste corpo meu
e sustém as articulações prestes a ceder.
Incapaz, porém, de suportar o retorno às leis de outrora,
ela avança, débil, por caminhos de segredo.
E a menos que lhe dês alento, com o encanto do teu sopro,
abandonará, em menos de nada, as minhas fracas articulações.
Por isso, vamos! Cola com força os teus lábios aos meus lábios,
e que sem cessar um único sopro aos dois sirva de alimento,
até que, passadas as agruras tardias de um furor insaciável,
uma só vida venha a esvair-se de duplo corpo. [i] Caronte era o barqueiro que, nas margens do Estiges, o rio infernal, estava encarregue de transportar para o Hades as almas dos defuntos.
Trad. portuguesa de Carlos Jesus
NOTA: O lançamento do livro que contém este e mais 18 "Beijos", em edição bilingue, decorrerá na Livraria Minerva (Rua de Macau), Coimbra, no próximo dia 20 de Dezembro de 2007.