Beijo XIV


Porque me ofertas esse teu labiozinho em fogo?
Não quero, não quero agora beijar-te, dura Neera,
mais dura do que a dureza do mármore.
Tanto caso farei eu desses teus beijos inofensivos,
ó minha mulher vaidosa,
que com a verga enrijecida, em riste,
acabe por perfurar as minhas vestes e as tuas
e, furioso de desejo vão,
me consuma, infeliz, com o meu pau em fogo?
Para onde foges? Espera, e não me negues
Esses olhos, nem esses lábios em fogo!
Agora sim, quero beijar-te, minha ternura,
mais terna que a penugem de um ganso.



(Janu Segundo, poeta novilatino: início do séc. XVI)



E se Narciso, o herói que pela sua imagem se apaixonou, até para o riacho tombar, embevecido pela sua beleza, não se tivesse afinal apaixonado, não se achasse assim tão belo e, no momento derradeiro, se tivesse voluntariamente entregue à morte precisamente (imagine-se) por se achar horrendo?


O mancebo que foi, durante milénios que se não contam, símbolo de beleza, que com seu nome baptizou mesmo uma flor, parece afinal - assim o conta um recém encontrado papiro (Pap. Oxy. 4711) - ter nutrido por si próprio um ódio tão imenso que o levou ao suicídio.


Nessa confluência sempre confusa de reflexos num riacho, ou no mais íntimo de cada um de nós, parece afinal haver sempre lugar para o belo e para o feio, para o divino e para o mortal.


À semelhança de Narciso, o que vemos nós quando nos miramos num espelho? Que ser, formoso ou horrífico, está afinal do outro lado? Nós mesmos, ou uma cópia demasiado imperfeita do nosso ser, débil de mais para ser real? Na confusão de espelhos convexos, quando tudo se disforma - pelo contrário - não haverá aí lugar para nos encontrarmos?


Narciso tombou. De facto. Mas que coisa ou que ser fantástico (porque insondável, talvez) viu ele do outro lado das águas?




Lembram-se do mito da morte de Héracles, consumido pela túnica fatal que lhe enviara Dejanira, ciumenta pela paixão do marido pela jovem Íole. Embebera a peça de vestuário num filtro amoroso que lhe dera Nesso, o centauro, o mesmo que a havia tentado raptar nas margens do rio Licormas.
E Héracles, que ardia já numa paixão, vai arder de facto numa pira que ele próprio manda atear ao filho Hilo.
Nele, enfim, o amor (que é paixão) queima, arde e é bem visível aos olhos de quem o contempla.

Veja-se, a propósito, o Ditirambo 16 de Baquílides que acabo de traduzir:




Irei às terras de Piteu], já que que
um cargueiro de ouro me euviou,
da Piéria, Urânia de belo trono,
atulhado de afamados hinos
para o deus], no tempo em que, no florido Hebro,
entre feras] ele se alegra, ou com o cisne de longo pescoço,
com doçura da sua voz] animando o coração,
até a Pito] tu chegares, a buscar
dos péanes as flores,
Apolo Piteu,
essas que os coros das gentes de Delfos
entoam junto do teu ilustre templo.

Mas antes, cantemos como deixou
a Ecália, consumida pelo fogo,
o filho de Anfitrião, homem de ardilosos planos,
e veio para o promontário que o mar ondeia;
aí, do seu resgate, a Zeus de vastas nuvens,
o Ceneu, nove touros de grave mugir se dispôs a imolar,
mais dois ao deus que revolve os mares e abala a terra,
e à donzela de olhar violento,
a virgem Atena,
uma novilha de altos cornos, ainda por ungir.
Eis que o deus a que se não resiste
a Dejanira inspirou, razão de muitas lágrimas,

um plano astuto, quando ela
tomou conhecimento da dolorosa notícia:
que a Íole de níveos braços
o filho de Zeus, destemido na guerra,
a enviava, como esposa, ao seu refulgente palácio.
Ah infeliz! Desgraçada! Que foi ela planear!
O poderoso ciúme a deitou a perder,
junto com o tenebroso véu
que escondia as coisas do porvir,
quando, nas margens em flor do rio Licormas,

recebeu de Nesso a prodigiosa oferenda.


Um fogo consumado a que o grupo Thíasos, há já algum tempo, procurou dar expressão dramática e visual, ao encenar a peça "Traquínias" de Sófocles, da seguinte forma:



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