E se Narciso, o herói que pela sua imagem se apaixonou, até para o riacho tombar, embevecido pela sua beleza, não se tivesse afinal apaixonado, não se achasse assim tão belo e, no momento derradeiro, se tivesse voluntariamente entregue à morte precisamente (imagine-se) por se achar horrendo?
O mancebo que foi, durante milénios que se não contam, símbolo de beleza, que com seu nome baptizou mesmo uma flor, parece afinal - assim o conta um recém encontrado papiro (Pap. Oxy. 4711) - ter nutrido por si próprio um ódio tão imenso que o levou ao suicídio.
Nessa confluência sempre confusa de reflexos num riacho, ou no mais íntimo de cada um de nós, parece afinal haver sempre lugar para o belo e para o feio, para o divino e para o mortal.
À semelhança de Narciso, o que vemos nós quando nos miramos num espelho? Que ser, formoso ou horrífico, está afinal do outro lado? Nós mesmos, ou uma cópia demasiado imperfeita do nosso ser, débil de mais para ser real? Na confusão de espelhos convexos, quando tudo se disforma - pelo contrário - não haverá aí lugar para nos encontrarmos?
Narciso tombou. De facto. Mas que coisa ou que ser fantástico (porque insondável, talvez) viu ele do outro lado das águas?